Luciana ficou com parte da cara deformada e paralisada após cirurgia estética. Ministério Público investiga alegados falsos médicos
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Luciana Félix fez três intervenções estéticas no rosto que correram mal. Descobriu que a pessoa que as fez, que se apresentava como médica dentista, não está inscrita na Ordem. MP e ASAE investigam. O caso partiu de uma queixa apresentada por uma cliente que viu parte da sua cara ficar deformada. Luciana Félix, uma empresária brasileira a viver em Portugal há cinco anos, nunca tinha feito uma cirurgia plástica. Até ao ano passado. Quando decidiu fazer três intervenções no rosto. Uma delas, a primeira, consiste em num corte no interior da boca por onde se retiram gordura das bochechas. Como nunca tinha passado por nada parecido, não estranhou a dor que sentiu durante a intervenção — ainda que a achasse muito forte, julgava ser normal. Mas quando, semanas mais tarde, a sua cara começou a ficar transfigurada não teve dúvidas que algo estava errado.
Depois dos primeiros dias passados com febre, fortes dores de cabeça e inchaço em toda a cara, surgiram as consequências mais graves. Ficou com parte do rosto paralisado durante oito meses, tendo mesmo dificuldades em sorrir. Os lábios estavam assimétricos e as bochechas começaram a descair. Luciana Félix sentiu também a sua pele envelhecida demais para aquilo que considera que devia estar aos 38 anos. Um ano depois, os efeitos ainda são visíveis, apesar de em menor escala. A tudo isto juntou-se a falta de assistência, de que se queixa, por parte da quem fez as intervenções, e as alegadas ameaças de que diz ser alvo. Foi então que a empresária decidiu tentar perceber quem era Mónica Carmo Lima, a médica que a operara. Uma dentista que tinha feito a primeira cirurgia numa clínica dentária.
E descobriu que ela não era sequer médica dentista, como se apresentava a Luciana Félix. A resposta da Ordem dos Médicos Dentistas veio negativa: a pessoa que lhe tinha feito a cirurgia plástica não estava inscrita. Além disso, também ficou a saber que também Augusto Jenner Rêgo, o dono da clínica onde fez a intervenção, e que também tinha feito, segundo afirma, tratamentos dentários ao seu marido, a Sorridente Ideia, não estava inscrito na entidade que regula a medicina dentária em Portugal.
A Ordem dos Médicos Dentistas rapidamente reportou o sucedido às autoridades. Luciana Félix também apresentou uma queixa por ameaça. Agora, o Ministério Público está a investigar o caso, bem como a ASAE. O Observador contactou o dono da clínica em causa, que nega que faz procedimentos de medicina dentária e diz que o facto de não estar inscrito na Ordem pode ser “um problema com o nome”. Sobre a Mónica Carmo Lima, explica que não é trabalhadora da clínica e que apenas lhe emprestou a sala para fazer um procedimento estético. Já a alegada médica remeteu esclarecimentos para o seu advogado, que recusou comentar o caso, refugiando-se no segredo de justiça.
“Disse que o meu rosto era muito redondo e gordo e que eu ficaria linda”. As três intervenções custaram 1.440 euros
Luciana Félix, que estava grávida na altura, diz que foi apresentada a Mónica Carmo Lima pelo alegado médico dentista, Augusto Jenner Rêgo, quando este estava a fazer um tratamento ao seu marido. O casal era cliente, já há alguns anos, da clínica dentária Sorridente Ideia. “Passados alguns meses da gravidez, a senhora Mónica aproximou-me de mim. Incentivou-me a fazer a cirurgia plástica de Bichectomia com ela. Disse que o meu rosto era muito redondo e gordo e que eu ficaria linda“, conta ao Observador. Apesar de alguma resistência, a empresária aceitou a sugestão da alegada médica. Combinaram fazer várias intervenções. A primeira seria a bichectomia: foi feita na clínica Sorridente Ideia e custou 500 euros, segundo afirma. Luciana Félix garante que a cirurgia foi feita na presença do dono da clínica. Já Augusto Jenner Rêgo garante ao Observador que Mónica Carmo Lima não trabalhava na clínica e “só usou a sala” para fazer a bichectomia. “Ela não alugou. Pediu emprestado para fazer o procedimento. E eu aceitei. Não tive acesso a pagamentos, nem nada”, assegura.
Logo durante a cirurgia plástica, Luciana sentiu “muita dor”, mas achou que era normal porque nunca tinha feito algo assim. Ao que o Observador apurou junto de um profissional ligado à área da estética, a bichectomia é uma cirurgia estética que só deve ser feita por cirurgiões plásticos: não deve ser feita por médicos dentistas.
Cerca de um mês depois, Mónica Carmo Lima terá ido à casa da cliente para ver como estava. Logo nesse dia, terá sido feito o segundo procedimento: a lipoaspiração do duplo-queixo, que consiste em injetar enzimas na zona da ‘papada’. Custou 240 euros. “Ficou muito inchado e perguntei se era normal. Ela disse que sim. Perguntei a outras pessoas que conheço na área da estética e disseram que não era normal. Fiquei com medo e disse-lhe que não queria aplicar mais. Atualmente, tenho até uma cicatriz no sítio onde ela aplicou [as injeções] porque inflamou e ficou com uma ferida”, relata. Cerca de duas semanas depois, quando o seu rosto já tinha desinchado, foi fazer a terceira intervenção. Luciana Félix e Mónica Carmo Lima combinaram uma harmonização facial: englobaria colocar botox nos olhos e na testa, modelar a boca com ácido hialurónico e colocar fios tensores. Custaria 600 euros. “Como eu disse que não queria mais a lipoaspiração, ela recomendou os fios tensores”, conta Luciana Félix.
Assim foi. Só que desta fez, estes procedimentos aconteceram numa sala que, segundo explica a empresária, a alegada médica dentista alugava num salão de beleza no Campo Pequeno. “Começou a aplicar o produto e doeu muito. Ela disse que era anestesia, achei normal, fechei os olhos e fiquei quieta. Foi quando ela colocou os fios na minha bochecha e não na papada, como tínhamos combinado. Quando começou a pôr na boca, começou a doer muito. Senti que a agulha atravessou para o lado de dentro da boca porque senti o gosto amargo do produto“, relata. Logo que chegou a casa nesse dia, Luciana Félix começou a ficar inchada. “Doía muito, disse que era normal. Passado uns dias, foi ficando pior. Tive muita febre e dor de cabeça. Os dias foram passando e fiquei pior, com o rosto horrível”, conta, adiantando que pediu ajuda à alegada médica e ela lhe terá dito que “era tudo normal”, que o seu “organismo não tinha vitaminas” e que “precisava de pôr gelo” — o que o Observador pôde confirmar através de mensagens trocadas.
Nos oito meses seguintes, Luciana Félix ficou “com o rosto paralisado”, conta. Quando sorria, apenas metade da cara mexia. Durante esse período, a empresária foi pedindo ajuda a Mónica Carmo Lima. Mas as justificações não a deixavam animada: ou era porque “a anestesia local dava mais inchaço”, ou porque tinha feito “vários procedimentos no mesmo dia”, ou porque tinha “falta de vitamina C e complexo B”, ou ainda que a “culpa era do organismo”. Luciana Félix estava “desesperada” e começou a pedir ajuda em grupos nas redes sociais dedicados a cirurgias estéticas. Mas acabou, segundo conta ao Observador, por ser contactada por uma mulher que se dizia advogada da alegada médica que lhe fez as intervenções. “Pediu para eu parar de publicar nos grupos e parar de dizer que era cliente dela ou eu seria processada por calúnia. Eu só chorava porque com o rosto assim ainda era ameaçada“, recorda. A empresária adianta ainda que recebeu mensagens de familiares da alegada médica, que o Observador leu, a ameaçá-la e ao próprio filho bebé. Mas cuja origem é impossível confirmar.
Ordem diz que os alegados médicos “não se encontram legalmente habilitados ao exercício da medicina dentária em Portugal”
Foi então que a empresária decidiu contactar a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Médicos Dentistas. E foi informada que não existia nenhuma médica dentista com aquele nome registada nesta entidade. Ambas as Ordens participaram os factos às autoridades competentes para abrir uma investigação. Luciana Félix acabou também por apresentar queixa por ameaça. Agora, o Ministério Público abriu um inquérito: o caso está a ser investigado no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, segundo confirmou a Procuradoria-Geral da República ao Observador. ASAE confirmou que está igualmente a averiguar o caso.
O Observador contactou ainda as duas Ordens para confirmar se os alegados médicos em causa estão ou não inscritos. A Ordem dos Médicos Dentistas garantiu que “os visados Mónica do Carmo Lima e Augusto Jenner Rêgo não são, à presente data, médicos dentistas inscritos” e não se encontram legalmente habilitados ao exercício da medicina dentária em Portugal“. Ao que o Observador apurou, esta Ordem está nesta fase a avaliar se os procedimentos realizados a Luciana Félix foram feitos por algum deles na qualidade de alegados médicos dentistas. Já a Ordem dos Médicos também confirmou que “não existe nenhum médico ou médica inscrito com os nomes referidos”. Questionada, fonte desta entidade explicou que mesmo que algumas destas pessoas tenha um curso superior, mesmo tirado em Portugal, não pode exercer se não estiver inscrito.
Ao Observador, Augusto Jenner Rêgo nega que faça procedimentos de medicina dentária — apesar de Luciana Félix afirmar que fez um tratamento dentário ao seu marido e de ter mostrado mensagens que mostram marcações com ele. “Eu sou o representante legal da empresa, faço supervisão. Temos um diretor clínico”, explicou ao Observador. Sobre o facto de não estar inscrito na Ordem dos Médicos Dentistas, admite que “provavelmente” haja “um problema com o nome”. “Eu tenho licença noutro país da União Europeia e como vivo mais lá do que aqui, faço mais a parte de gestão”, explicou.
Garante ainda que a licença do espaço “todos os anos é atualizada”, bem como o quadro clínico. Questionada, a Entidade Reguladora da Saúde também explicou ao Observador que, com a pesquisa pela morada associada à clínica Sorridente Ideia é há um “registo ativo associado que se denomina “MACHADO & RAZZOTTO CLINICA DENTARIA LDA” e é explorado pela entidade MACHADO & RAZZOTTO MEDICINA DENTARIA, LDA”.
Sociedade Portuguesa de Medicina Estética recebeu mais de 150 queixas em 2020
O caso de Luciana Félix é apenas um entre as centenas de queixas que chegam todos os anos à Sociedade Portuguesa de Medicina Estética (SPME). Desde a criação, o departamento de Intrusismo — o órgão da SPME responsável por receber, analisar e dar encaminhamento às queixas recebidas — já recebeu mais de 300 denúncias. Mais de metade ocorreram no ano de 2020 e, só no primeiro trimestre de 2021, houve uma duplicação do número de casos, quando comparado com o período homólogo do ano anterior, segundo dados fornecidos ao Observador.
“Estes dados revelam uma tendência crescente no nosso país, pese embora também uma maior sensibilização da população para a denúncia dos casos de intrusismo, onde a SPME tem encetado esforços, quer pela sensibilização de profissionais médicos em formação, quer por campanhas dirigidas à população”, diz a responsável por este departamento, Inês Abreu. Inês Abreu considera que este é “um problema grave de saúde pública, pela quantidade de procedimentos que são realizados por pessoas não médicas e sem qualquer qualificação para o efeito, com adoção de práticas potencialmente lesivas da saúde dos pacientes”. “Embora estes procedimentos sejam enquadráveis no crime de usurpação de funções, o tempo de justiça não tem conseguido acompanhar o enorme aumento de situações a que se tem assistido nos últimos anos”, lamenta ainda.
Atualmente, Luciana Félix reconhece que os produtos injetados no seu rosto foram saindo — o que foi positivo por um lado, mas deixou à vista os efeitos de bichectomia. “Hoje, após um ano, o meu rosto está completamente envelhecido. Ela destruiu minha auto estima”, lamenta.
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